Bilionário quer fazer um futuro presidente do Brasil
Jorge Paulo Lemann quer fazer um futuro presidente do Brasil. Dono de uma fortuna de US$ 32,2 bilhões, o empresário mais rico do Brasil tem alguns mantras bem conhecidos, como obsessão por resultados e busca da eficiência. Outro mantra, menos explícito, é manter a maior distância possível do Estado. Suas maiores tacadas, como AmBev e Lojas Americanas, ou Anheuser-Busch e Burger King, miraram setores não sujeitos à regulação estatal. Agora, aos 77 anos, Lemann está disposto a abandonar esse princípio. “Eu passei a minha vida inteira fugindo da política, nem querendo chegar perto. Hoje, eu acho isso errado”, disse Lemann em uma rara aparição pública. O bilionário falou em uma apresentação a cerca de 800 convidados, durante a comemoração dos 25 anos da Fundação Estudar, na segunda-feira, dia 1º, em São Paulo. Lemann foi além de uma simples autocrítica. Agora, a política é mais uma meta para ele. “A minha esperança é que os princípios da Fundação, a meritocracia, o pragmatismo, o escolher gente boa, sejam adotados pelo País, pelo governo”, disse ele. “Espero que um futuro presidente brasileiro venha da Fundação.”
O empresário criou a Fundação Estudar para, como de costume, aplicar uma abordagem empresarial à sua forma favorita de benemerência. Em 25 anos, cerca de 600 estudantes receberam bolsas. A lista inclui desde sobrenomes como o do próprio Lemann – seu caçula, Kim, de 20 anos, estuda psicologia e administração na Califórnia – e a quarta geração da família Ermírio de Moraes. Porém, boa parte dos bolsistas vem de famílias menos abastadas. Lemann paga os cursos. Economista formado em Harvard, nos Estados Unidos, ele sempre viu a educação de qualidade como uma maneira de obter quadros qualificados para gerir suas empresas e, de quebra, disseminar seus princípios pelo Brasil corporativo. Não por acaso, Carlos Brito, que presidiu a AmBev e hoje comanda a empresa resultante da fusão com a belga InterBrew, foi o primeiro contemplado (leia o quadro “Os Discípulos” ). Nos últimos anos, porém, o escopo se ampliou. Ao lado dos estudantes de administração e economia, Lemann passou a custear cursos como administração pública, tanto na Fundação João Pinheiro, em Minas Gerais, quanto em Harvard. “Ele percebeu que, para fazer algo que realmente tivesse impacto, não bastava apenas formar pessoas para as empresas”, diz Tiago Mitraud, diretor-executivo da Fundação Estudar. “Ele mudou de ideia pelo convívio com os alunos que queriam melhorar a gestão pública.”
Lemann e seus pupilos perceberam que isso é essencial para que suas iniciativas tenham impacto. “É possível mudar quase qualquer coisa dentro de uma empresa, mas do muro para fora é preciso mudar a forma de gerir o setor público”, diz Bernardo Paiva, CEO da AmBev. Na apresentação aos bolsistas, Lemann foi explícito. “Vocês, jovens, terão uma bela oportunidade para fazerem parte da política no Brasil, da governança do Brasil. E de reproduzirem nossos conceitos de meritocracia, pragmatismo, resultado, empreendedorismo e essas coisas todas que eu acredito”, disse ele. “Tem muito espaço para melhorar as coisas no Brasil, meu sonho grande agora é o Brasil.”
O bilionário terá de resolver um problema espinhoso. Iniciativas de melhoria da gestão pública por líderes empresariais não são novidade. Um exemplo recente é o de Jorge Gerdau Johannpeter. No começo dos anos 2000, ele fundou o Movimento Brasil Competitivo. A intenção era aplicar conceitos empresariais à máquina pública. Realizado em parceria com o consultor Vicente Falconi, responsável por reestruturar empresas como a Gerdau e a própria AmBev, o movimento obteve resultados positivos. Um deles foi o choque de gestão em Minas Gerais. Outro foram as melhorias em Pernambuco, cujo governo instituiu métricas de avaliação e estabeleceu metas e premiações por desempenho para policiais e professores. Porém, mesmo participando do Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social, o chamado Conselhão, no primeiro mandato de Dilma Rousseff, Gerdau não conseguiu implantar mudanças na gestão da presidente e se afastou do governo. Com isso, essas iniciativas não ganharam escala nem foram reproduzidas em outras unidades da Federação. Procurados, Gerdau e Falconi não concederam entrevista.
A causa desse sucesso apenas parcial foi a ênfase em ferramentas de gestão empresarial. Empresas e governo são diferentes. “É preciso refletir sobre os problemas antes de escolher as melhores ferramentas de gestão, e só depois disso procurar adaptá-las à realidade e à cultura local”, diz Fernando Coelho, professor de gestão pública da Universidade de São Paulo. “Não se pode tratar desiguais como iguais.”
Segundo Coelho, a primeira barreira contra a adoção de soluções corporativas padronizadas é que, no governo, o processo de tomada de decisão é difuso. “A forma de administrar uma empresa que tem um dono ou um CEO não é a mesma da gestão pública.” Outro problema é que as propostas de mudança frequentemente vêm de baixo e não encontram respaldo no topo da hierarquia. Assim, muitas pequenas melhorias que, em conjunto, poderiam ter um impacto considerável, são propostas por funcionários de carreira do serviço público, não por políticos nem autoridades do primeiro escalão. Isso restringe a eficácia dessas mudanças.
INEFICIÊNCIA
A má gestão no governo tem frequentado as manchetes há mais de dois anos devido às descobertas da Operação Lava Jato, o que colocou o desperdício de recursos públicos em discussão. Corrupção é um problema gravíssimo, mas não é o mais sério. As malfeitorias são, literalmente, um terço do problema. Segundo Coelho, além dos males conhecidos, a corrupção mascara as perdas decorrentes da ineficiência do Estado. “É importantíssimo discutir a corrupção. No entanto, novas pesquisas apontam que, para cada real perdido com corrupção, o Estado perde dois reais pela ineficiência da gestão”, diz ele. “Precisamos ir além da mera redução de custos e desenhar melhor as políticas públicas, eliminando fragmentações, sobreposições e incoerências.”
Mesmo assim, não faltam bons exemplos a serem seguidos. E quem diz isso tem uma experiência vasta: Maria Silvia Bastos Marques, hoje presidente do BNDES. A economista já atuou de ambos os lados do balcão. Foi secretária de Estado no Rio de Janeiro, presidiu a Companhia Siderúrgica Nacional e, recentemente, ficou a cargo da Empresa Olímpica Municipal, do Rio. “Temos boas experiências, temos bench-marks (referências), como a do Instituto de Matemática Pura Aplicada (Inpa) e da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa), instituições de ponta que se mantêm inovadoras”, afirmou ela, que também participou do evento da Fundação Estudar. Mesmo assim, a otimista incurável diz estar cética. “Não reproduzimos nem os bons exemplos nas demais instâncias do setor público.” Para ela, o maior desafio está nos bancos escolares. “O País precisa de um senso de urgência para a Educação”, diz ela. “As pessoas falam que mudar a Educação vai demorar dez anos, mas vai demorar dez anos e um dia, porque já perdemos o dia de hoje.”
Apesar das dificuldades, começam a aparecer entre jovens talentos brasileiros a vocação para a gestão pública. É o caso de Joice Toyota, de 32 anos, ex-bolsista da Fundação, que concluiu um mestrado em Educação da universidade americana Stanford. Lá, seu projeto de conclusão de curso resultou na criação da ONG Vetor. Lançada no fim de 2014, a Vetor, que não tem fins lucrativos, ajuda a desenvolver talentos para a gestão pública. Os financiadores são nomes reconhecidamente exigentes na hora de abrir a carteira: a própria Universidade Stanford, o Google, a Fundação Lemann e a Brava, fundação de Beto Sicupira, entre outras. “O Lemann nos disse que o nosso medo de assumir riscos e tentar novos caminhos o deixava desapontado. Foi aí que resolvi me tornar uma empreendedora social”, diz Toyota. Sua vocação para a gestão pública foi despertada na adolescência, quando ela trocou a escola privada pelo ensino público. As condições precárias ficaram na memória. “Quando havia professor, faltava material e quando tínhamos os livros, faltava o mestre”, diz ela. “Já adulta, quando fui trabalhar em secretarias de educação, entendi os processos da administração pública. De fora, as pessoas sempre têm uma solução rápida, fácil e equivocada. No entanto, os desafios não são insolúveis.”
Joice é um exemplo de como gestores bem formados e com vontade de mudar o Brasil podem fazer diferença. Ela foi chamada pela Secretaria de Educação do Amazonas para resolver um problema comum a todos os Estados: a alocação eficiente de professores. Como estabelecer métricas para decidir quem ensina o quê, e onde, sem as distorções do apadrinhamento político? E como combinar as características dos professores, levando em conta as necessidades dos alunos, e reduzindo deslocamentos entre diferentes escolas, ainda mais pensando nas distâncias amazônicas? A resposta está nos algoritmos baseados em Big Data, hoje uma ferramenta comum aos departamentos de gestão de pessoas das empresas. Outra de suas sugestões, esta apresentada à Secretaria de Educação de Goiás, ajudou a reduzir a evasão escolar. A ideia é simples: criar um serviço telefônico de atendimento ao cidadão, para qual os pais ligavam para obter informação de matrículas. A atendente aproveitava o contato para atualizar o telefone da família do estudante. Com o tempo, a Secretaria construiu uma base de dados de cada escola. Quando um aluno falta, o sistema telefona para o responsável, resolvendo um problema no início. Segundo Toyota, isso reduziu a evasão. Em quanto? Não dá para dizer. “Não há dados consolidados que permitam medir o impacto efetivo da medida”, diz ela. “Esse é um problema crônico no setor público.” Coelho, da USP, assina embaixo. “É preciso injetar inteligência nos recursos humanos da gestão pública e acabar com a barganha”, diz ele. “Acompanho o trabalho da Joice e ela traz bons exemplos de melhoria de processos.”
Há outros bons exemplos de como o setor público foi permeável à mudança, mas isso só ocorre em condições específicas. Nos anos 1980, o governo britânico teve a ideia de reunir diversas repartições públicas em um só lugar para facilitar a vida do cidadão. Conhecida como One Stop Shop, a iniciativa foi replicada no Brasil. O primeiro Estado a lançar esse programa foi a Bahia, que lançou o Serviço de Atendimento ao Cidadão (SAC) em 1995. Dois anos depois, o governo de São Paulo criou o Poupatempo, e hoje, com nomes distintos, serviços semelhantes podem ser encontrados em diversos Estados. No entanto, a criação do Poupatempo em São Paulo só ocorreu porque a ideia veio de cima. A criação do serviço só deu certo porque entidades vinculadas a secretarias diferentes receberam a ordem de trabalhar lado a lado. “Isso só foi possível devido ao apoio do então governador Mário Covas e do professor Antonio Angarita, que era secretário de Governo e Gestão”, diz Daniel Annenberg, ex-diretor-geral do serviço e ex-presidente do Detran-SP. E há outro problema. Em uma empresa privada, o departamento que dá lucro prospera. No setor público, nem sempre: mesmo os programas bem sucedidos não têm sua existência garantida. “Se o Poupatempo não tivesse continuado como uma prioridade de governo nos últimos 20 anos, já teria sido extinto, como aconteceu com tantos outros projetos”, diz ele.
O palanque do bilionário
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Nos últimos anos, a Fundação Estudar abriu suas portas para estudantes de administração pública. A mudança no enfoque veio da percepção de Lemann de que, para que seu projeto de mudar o País fosse duradouro, seria preciso atuar também no setor público. “Nos primeiros dez anos, a Fundação Estudar era focada na área de negócios. Fomos ampliando os cursos e há dois anos eliminamos qualquer restrição e focamos em identificar os melhores talentos”, explica Tiago Mitraud, diretor-executivo da Fundação Estudar.
A mudança começa a render frutos. Um exemplo é Bruno Santos, 28, que concilia um MBA no MIT com um Master em Administração Pública (MPA) em Harvard. Quando voltar ao país, em 2018, ele planeja se lançar candidato a deputado federal ou estadual em Belo Horizonte. “Um professor de Harvard provocou os alunos, dizendo que, se eles não gostavam da atuação dos políticos, deveriam ingressar na política. Eu aceitei o desafio.” Hoje Santos toca o portal Projeto Brasil, que apresenta os candidatos às eleições deste ano. A meta é estimular o voto consciente para que os cidadãos possam cobrar promessas de campanha.
Outros a subir no palanque de Lemann são Renan Ferreirinha e Wellington Trindade. Ferreirinha, a quem o bilionário apresentou como “uma das esperanças para o Brasil” , é estudante de Economia e Ciências Políticas de Harvard. e já manifestou interesse na carreira política a partir de 2018. Trindade, que estuda Administração no Rio de Janeiro, foi apadrinhado por um ministro na Fundação.
Segundo Annemberg, o grande problema do Estado é a má gestão, o que reduz a eficácia dos esforços e das iniciativas de melhoria. O tema, no entanto, não é um dos preferidos dos políticos brasileiros. Eles não vêem muita vantagem eleitoral em enfrentar o desgaste de cortar custos, cargos e pessoas, um esforço que não costuma se traduzir em votos. Outro fator dissuasivo é que, como os resultados desses movimentos demoram a aparecer, muitos temem arrumar a casa para os sucessores. Daí o desânimo de Maria Silvia. “Falamos nas reformas trabalhista, tributária e previdenciária há décadas, e nada disso foi feito. A sociedade precisa querer, precisa se mobilizar para debater e exigir mudanças. Eu não acredito em mudanças que venham de governos. Sinceramente, eu não acredito.”
Para o professor da USP, a discussão da gestão pública ainda está distante da população, mas o fato de organizações de sociedade civil, como a de Lemann, dar maior visibilidade ao tema, aumenta a discussão e fomenta a capacidade de articulação. Nesta semana, Jorge Gerdau voltou à cena ao sugerir a criação de um núcleo de inteligência de governança, que seria responsável por implantar a digitalização de documentos da gestão pública, o que poderia reduzir em 30% os custos com burocracia. A proposta teria agradado parte da equipe do presidente Michel Temer. Porém, como diria o próprio Jorge Paulo Lemann: “Acho bom. Mas dá para melhorar.”
Por Cláudio Gradilone e Flavia Galembeck