Dia Nacional de Luta contra a Violência à Mulher: o que ainda precisamos aprender

 Dia Nacional de Luta contra a Violência à Mulher: o que ainda precisamos aprender

 

De 1980 a 2025, o país acumulou leis e discursos em defesa das mulheres, mas ainda convive com as mesmas estruturas simbólicas que sustentaram a tese da “defesa da honra” e transformaram a violência em hábito social.

 

O ano de 1980 foi emblemático por muitas razões. Naquele ano, assistíamos na Rede Globo a minissérie Malu Mulher, que debatia a condição da mulher diante de uma liberdade recém-conquistada, buscando tomar conta do próprio destino sem precisar se submeter à figura de autoridade de um marido; Gonzaguinha cantava pela primeira vez as palavras “coração na boca, peito aberto, vou sangrando, são as lutas dessa nossa vida que eu estou cantando”; no mesmo ano, no dia 10 de outubro, diversos coletivos e grupos de mulheres se reuniram nas escadarias do Teatro Municipal de São Paulo, em protesto contra o índice crescente de crimes de gênero em todo o Brasil. A manifestação se tornou histórica, e a data virou símbolo desse anseio social, passando a abrigar o Dia Nacional de Luta contra a Violência à Mulher, data que impulsiona a reflexão dos números da violência contra a mulher e o que se tem feito para combater o problema.

Entre os alvos do protesto à época estava a então aceita em muitos júris “legítima defesa da honra”, usada por parceiros para atenuar ou justificar assassinatos de suas esposas e namoradas. No ano anterior, a sentença do empresário Doca Street  pelo assassinato de sua noiva Ângela Diniz acatou a tese, que buscava justificar o crime praticado como reação a uma suposta traição ou “ofensa moral” provocada pela vítima, sendo o caso, até hoje, um dos exemplos mais marcantes da aplicação e do impacto dessa perspectiva para lá de controversa.

Poderíamos pensar que essa realidade está muito distante dos dias atuais, já que, de lá pra cá, diversos instrumentos jurídicos de combate e correção à prática de violência contra a mulher foram instituídos, mas a verdade é que o caso Doca Street/Ângela Diniz não está tão distante assim dos nossos dias. Para se ter uma ideia, foi somente no ano de 2023 que o STF declarou, ao julgar a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) nº. 779, que o uso da tese da legítima defesa da honra é inconstitucional e que contraria os princípios da dignidade humana, da proteção à vida e da igualdade de gênero. Na inicial da ação, inclusive, os autores fizeram um levantamento de casos no País em que a tese da legítima defesa da honra foi usada e onde os tribunais do júri absolveram culpados de crimes de feminicídio.

Esse ano, completamos 45 anos do Dia Nacional de Luta contra a Violência à Mulher e, apesar disso, parecemos estar diante do mesmo espelho, apenas com novos reflexos. O discurso mudou de forma, mas uma estrutura resiste: ainda há quem tente suavizar a violência, culpar a vítima, ou transformar o agressor em um homem “tomado pela emoção”. O Brasil que até 2023 ainda convivia com alegações como a tal da “legítima defesa da honra” é o mesmo que ainda apresenta estatísticas alarmantes de feminicídio, assédio e desigualdade salarial. Nesse quadro, o que podemos fazer realmente pela Luta contra a Violência à Mulher é a pergunta que ecoa hoje.

Que violência é essa?

As Nações Unidas definem a violência contra mulheres como “qualquer ato de violência de gênero que resulte ou possa resultar em danos ou sofrimentos físicos, sexuais ou mentais para as mulheres, inclusive ameaças de tais atos, coação ou privação arbitrária de liberdade, seja em vida pública ou privada”. Ela reflete tanto questões culturais como sociais e até religiosas, que se manifestam de formas diferentes em diferentes sociedades.

Enraizada e apoiada por valores sociais estruturais, a violência contra a mulher está presente no espaço público e entra conosco pela porta de casa, podendo acontecer de forma clara ou sutil, praticada por pessoas que a mulher conhece, convive e em quem confia. 

São, portanto, situações que decorrem de uma visão distorcida em relação à mulher e à posição que ela pode (e deve) ocupar na sociedade, dando a homens e mulheres papéis assimétricos. Acredita-se, por exemplo, que apenas ao homem é dada a capacidade de prover financeiramente a família, e por isso ele deve ser independente, capaz e resistente. A mulher, dependente, deve apenas se submeter à vontade de pais e irmãos e, após o casamento, do seu marido, exercendo então o trabalho economicamente invisível de cuidar das tarefas domésticas e do cuidado dos filhos. Nesse caminho, muitos homens acabam internalizando a ideia de que podem violar qualquer escolha pessoal de uma mulher, seus sentimentos e, finalmente, seu corpo físico. 

O combate à violência à mulher é importante para toda a sociedade

Segundo números publicados pela Organização Mundial da Saúde (OMS), estima-se que uma em cada três mulheres no continente americano sofreram violência física e/ou sexual por parte do parceiro íntimo, ou violência sexual por um não-parceiro, durante toda a sua vida. Por essa razão, a OMS enquadra hoje a violência contra as mulheres como um problema de saúde pública e de violação dos direitos humanos.

Os estudos também indicam que crianças que crescem em famílias onde há violência podem vir a sofrer de diversos transtornos comportamentais e/ou emocionais, que também podem resultar tanto na prática futura da mesma violência como que venha ela mesma a sofrer atos violentos.

Desse modo, os custos sociais e econômicos da violência contra a mulher afetam toda a sociedade, resultando em mulheres isoladas, incapazes de trabalhar, não remuneradas, excluídas das atividades regulares da vida produtiva e com capacidade limitada de cuidar de si mesmas, seja na vida adulta, seja na velhice.

Ainda segundo a OMS, o impacto da violência na saúde e no bem-estar da mulher pode incluir outras questões sérias com consequências políticas e sociais, como gestações indesejadas, abortos induzidos, problemas ginecológicos e infecções sexualmente transmissíveis, incluindo o HIV. As violências praticadas podem ainda levar as mulheres à depressão, síndrome pós-traumática, transtornos de ansiedade, dificuldades de sono, transtornos alimentares, aumento no tabagismo e no consumo de álcool.  Entre os efeitos menores para a saúde, também temos as dores de cabeça, dores corporais, distúrbios gastrointestinais, mobilidade limitada e problemas de saúde em geral. Por fim, a Organização pontua que a violência sofrida pelas mulheres pode resultar em homicídios ou suicídios.

Durante a pandemia da Covid-19, conforme a 14ª edição do Anuário Brasileiro de Segurança Pública, foram 648 vítimas de feminicídio somente no primeiro semestre de 2020 – um aumento de 1,9% em relação ao mesmo período de 2019. Foram registradas no ano mais de 105 mil denúncias de violência contra a mulher no Ligue 180 e no Disque 100. Do total delas, 72% (75,7 mil denúncias) tratavam de violência doméstica e familiar contra a mulher.

Sob uma perspectiva econômica, cada mulher afastada do trabalho e impedida de empreender representa, para além da dimensão humana e jurídica, também perda de potencial humano e produtividade; aumento de custos públicos com saúde, segurança e assistência social, e redução da inovação: elementos cruciais para o desenvolvimento sócioeconômico de um País.

Como você pode colaborar?

Para colaborar com a luta e garantir uma sociedade justa, solidária e segura para todos, é preciso mais do que aumentar punições: precisamos de políticas públicas, de pressão social pela efetividade das normas e uma mudança de paradigmas sociais. Há, ainda, atitudes imediatas que toda a sociedade pode adotar para combater a violência contra a mulher. Aqui vão algumas sugestões do Instituto Maria da Penha:

1. Não diga que a vítima “gosta de apanhar”

Quem é vítima de violência doméstica passa muito tempo tentando evitá-la para assegurar sua própria proteção e a de seus filhos, e muitas vezes fica ao lado do agressor por medo, vergonha ou falta de recursos financeiros. Mas essa mulher sempre deseja e procura acreditar que a violência vai acabar, nunca permanece para manter a violência. Apoie as mulheres que estão tentando, mesmo que sem sucesso, interromper o ciclo da violência, que se estabelece e é constantemente repetido (aumento da tensão, ato de violência e lua de mel), abrangendo diversos tipos de violência (física, moral, psicológica, sexual e patrimonial), que podem ser praticadas de maneira isolada ou não. A maior parte dos feminicídios ocorre justamente na fase em que a mulher está tentando se separar do agressor.

2. Meta a colher, o garfo e, se necessário, vire o prato

A Lei Maria da Penha pode ser aplicada mesmo sem a queixa da vítima, então não se cale diante da violência: faça uma denúncia, ainda que anônima. Cobre ações das autoridades, pois o direito das mulheres à vida, à segurança e à dignidade é de responsabilidade da família, da sociedade e do poder público. A violência sofrida pela mulher é um problema geral, que impacta na economia do País e absorve recursos públicos por consultas, internações, cirurgias reparadoras, ou mesmo com aposentadorias precoces, pensões por morte, auxílios-doença, afastamentos do trabalho etc.

3. O agressor não é um “caso isolado”, um “monstro”

Se isso fosse verdade, eles também agrediriam chefes, colegas de trabalho e outros familiares, não somente a esposa e os filhos menores; eles agem dessa maneira porque acreditam que não haverá consequências pelos seus atos. Ao retratar o agressor como uma exceção, a sociedade preserva a ilusão de que o problema está no indivíduo e não na cultura que o produz. O homem que agride não surge do nada: ele é formado em um ambiente que naturaliza a dominação masculina, que silencia mulheres, que transforma ciúme em prova de amor e controle em cuidado, o que cria o terreno fértil para a violência. Reconhecer o agressor como produto e agente de uma estrutura é recusar a conveniência da negação e admitir que cada piada machista, cada julgamento moral sobre uma mulher, cada omissão diante de um caso de abuso contribui para sustentar o mesmo sistema que depois fingimos condenar.

4. Não basta punir o agressor: é preciso mudar a sociedade

A proteção das vítimas e a punição dos agressores é importante, mas não é suficiente, principalmente porque a violência contra as mulheres é um problema estrutural. Precisamos de um enfrentamento direto à violência de gênero, levando a discussão nos currículos escolares, promovendo pesquisas para gerar estatísticas e realizando campanhas educativas para a sociedade em geral (empresas, instituições públicas, órgãos governamentais, ONGs etc.). Fale sobre isso em família e torne esse combate uma luta também sua.

10 de outubro, 45 anos depois: o que queremos? 

Nossa consciência sobre o tema certamente mudou. Maismulheres denunciam as violências, mais vozes se unem, mais leis existem. No entanto, a cultura que normaliza a dominação masculina ainda se infiltra nos tribunais, nas redes e nos lares. O caso de Ângela Diniz, que parece um passado distante, ainda é, 45 anos depois, um lembrete de que as transformações legais não bastarão se não houver também mudança cultural e institucional. Leis são necessárias, mas não suficientes, se o olhar social ainda relativiza a violência e a autoridade pública ainda reproduz desigualdades. A superação da lógica que naturaliza a morte de mulheres exige a desconstrução dos símbolos que sustentam a desigualdade de gênero: no direito, na mídia, na educação e nas relações cotidianas. Somente assim poderemos, como sociedade, aprender com os eventos históricos que desejamos esquecer.

Se for vítima de algum tipo de violência (física, psicológica, moral ou patrimonial), peça ajuda: ligue 180 (24 horas por dia) ou procure uma delegacia.

 

Sobre a autora:

 

Maria Helena Argolo Cafezeiro é mulher, mãe, escritora, jornalista e advogada, e faz parte da Comissão da Mulher Advogada e de Proteção aos Direitos da Mulher da OAB Lauro de Freitas.

 

Referências do texto:

– Instituto Maria da Penha: https://www.institutomariadapenha.org.br/

– Agência de Iniciativas Cidadãs: https://aic.org.br/

– Violência contra a mulher: como identificar e combater?: www.trf3.jus.br

– “Tese da legítima defesa da honra é inconstitucional”, em Notícias do STF: https://noticias.stf.jus.br/, boletim de 1º/8/2023

 

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