Entidades civis esperam arquivamento do PL do Aborto
Arquivamento total. É o que entidades que atuam na defesa das vítimas de estupro esperam do Projeto de Lei 1904, também chamado de PL do Aborto. De autoria do deputado Sóstenes Cavalcante (PL-RJ), o projeto tinha iniciado uma tramitação relâmpago na Câmara Federal, no começo deste mês, depois de uma votação de urgência aprovada em apenas 30 segundos. Diante das pressões de entidades civis, protestos nas ruas e críticas nas redes sociais, desde parlamentares a celebridades, o presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL) anunciou que a proposta agora só será debatida depois do recesso parlamentar de meio de ano.
Apesar do adiamento, a mobilização e os debates em torno da proposta devem continuar. O PL equipara a interrupção de uma gestação a partir de 22 semanas ao crime de homicídio, com pena que pode chegar a 20 anos de prisão, mesmo nos casos em que o aborto é previsto na lei brasileira, como em decorrência de estupro ou estupro de vulnerável, anencefalia do feto ou risco de morte da mãe no parto. Para os casos de estupro não há limite de prazo para o aborto ser feito e o serviço é oferecido pelo Sistema Único de Saúde (SUS). No país, a pena de estupro é de 10 anos e essa disparidade da punição para o agressor e para as vítimas que recorram ao aborto foi um dos pontos levantados pelos grupos contrários ao PL.
Recentemente, uma adolescente de 14 anos, de Guarulhos (SP), precisou viajar do estado natal para Salvador, onde realizou a interrupção da gestação com 31 semanas. A adolescente veio à capital baiana com a mãe, que revelou que a garota foi estuprada pelo marido da avó, que está foragido. Antes de vir para Salvador realizar o procedimento, a adolescente e a mãe fizeram uma peregrinação por hospitais de São Paulo que se recusaram a realizar o aborto, mesmo que a recusa, conforme a legislação vigente no país, acarrete punições.
“Ninguém espera um avanço gestacional porque quer, ninguém deixa para fazer um aborto depois de avanço gestacional porque quer. Isso acontece porque é um número escasso de locais que oferecem o serviço dentro dos parâmetros previstos na lei e porque há o desconhecimento das vítimas dos seus direitos; além de outras barreiras que se apresentam quando a vítima busca o serviço, que vai desde os profissionais que se recusam até outras exigências”, afirma a defensora Lívia Almeida, coordenadora do Núcleo de Defesa das Mulheres (Nudem) da Defensoria Pública da Bahia, que acompanhou o caso da garota paulista.
Lívia Almeida endossa o coro de quem pede o arquivamento da PL. “Não existe forma de salvar esse projeto, não adianta tirar da vítima a questão da pena de prisão, mas manter para o profissional de saúde, porque isso vai inviabilizar todo o processo. Qual é o profissional que vai querer se arriscar? Além disso, não é possível tirar a possibilidade de realizar o procedimento a partir da assistolia fetal, porque essa é a técnica recomendada pela Organização Mundial de Saúde (OMS) e adotada por todos os profissionais que fazem um atendimento com humanidade e dignidade”, pontua.
A coordenadora do Centro de Defesa da Criança e do Adolescente Yves de Roussan (Cedeca-Ba), Luciana Reis, diz que o PL revitimiza as pessoas abusadas sexualmente e que engravidam por conta do crime. No caso das crianças e adolescentes, o processo é ainda mais complicado. “As crianças e adolescentes vítimas de abuso sexual e que engravidam em decorrência desse abuso não podem assumir a culpa, serem responsabilizadas por algo que, muitas vezes, elas nem entendem. Nós temos casos de crianças que chegam a pensar que estão com dor de barriga, com vermes, dor no estômago, mas não tem a menor ideia de que é uma gravidez”, acrescenta.
Tanto Lívia Almeida quanto Luciana Reis concordam que a proposta também não debate de forma séria o aborto como questão de saúde pública. “O projeto retira o pouco direito que esse grupo [crianças e adolescentes] têm, ele não debate o aborto, é sobre uma lei específica. Falar sobre temas da sexualidade na nossa sociedade ainda é tabu e você não pode responsabilizar a própria vítima em vez de buscar políticas públicas efetivas para atendê-la. Os grupos que defendem esse PL falam que são pró-vida, mas a vida de quem? Nós estamos falando de crianças violentadas”, enfatiza Luciana.
A coordenadora do Nudem, por sua vez, argumenta que o PL viola tratados internacionais dos quais o Brasil faz parte e contraria recomendações da Organização Mundial de Saúde (OMS), que desaconselha a adoção de leis que impõem barreiras para a realização do aborto nos casos previstos pela legislação. “A votação do PL é literalmente negociar com a vida e a saúde de meninas e mulheres, principalmente negras, que são as maiores vítimas dos abusos sexuais, por uma emenda parlamentar que busca atender interesses políticos”, diz Lívia Almeida.
“A questão do aborto é uma questão de saúde pública e ela também está ligada às questões de territorialidade classe e raça. As pessoas mais vulneráveis são justamente as mais pobres e negras”, complementa.
Recorte social e de raça
A incidência maior de vítimas de abusos sexuais entre a população negra e pobre também aparece no Atlas da Violência 2024, divulgado no dia 18 de junho pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP). Pesquisadora do Fórum, Juliana Brandão explica que mostrar esses dados é uma questão de apresentar o cenário para nortear políticas públicas. Primeiro, reconhecer que existe esse cenário no país e, depois, focar no grupo mais vulnerável, aqueles que têm as condições mais precárias.
“Com relação ao PL 1904, é preciso qualificar o debate e retomar o pacto civilizatório. Nós vivemos numa sociedade democrática de direito, a lei vigente no país já prevê aborto nos casos de estupro. É preciso colocar esse assunto na pauta, dar visibilidade e chamar o debate para o campo racional. O que está em jogo é o acesso ao direito e a dignidade das vítimas de abuso sexual”, diz a pesquisadora.
Em 2022, o Brasil bateu recorde de estupros e mais de 60% dos casos foram com meninas de até 13 anos, cita Luciana Reis, do Cedeca-BA. “Os meninos também são vítimas, mas as meninas acabam sendo mais vítimas e, até essa faixa etária, são seis em cada 10 casos”, cita.
Para Luciana, o PL é “o retrato do machismo, da misoginia e do patriarcalismo. É um parlamento que não pensa em políticas públicas para atender a população, mas que leva valores individuais para legislar”, critica.
Rede acolhimento
O Cedeca-Ba atualmente atende 30 casos de violência sexual divididos entre aqueles que têm acompanhamento quatro vezes na semana, a cada 15 dias e mensais. A capacidade da entidade é de atender 200 casos por mês. A estrutura conta com psicólogo, advogado e assistente social. “Nós temos um GT (Grupo de Trabalho) de atenção psicossocial e fazemos o encaminhamento dos atendidos para os serviços públicos como os Creas [Centro de Referência Especializado de Assistência Social] ou Caps [Centro de Atenção Psicossocial]”, explica Luciana.
Todos os dias chegam casos novos ao Cedeca, que atende por demanda espontânea, na sede da entidade, no Pelourinho, porque as pessoas confiam na organização criada em 1991. A instituição da sociedade civil também promove debates, estudos de caso e meios de instrumentalizar as redes de atendimento municipal e estadual para acolher as vítimas da forma correta.
Já o Núcleo de Defesa das Mulheres da Defensoria Pública baiana, entre outras funções, acompanha casos de violação do direito ao aborto nas situações previstas nas leis brasileiras desde 1940. A defensora Lívia Almeida lembra que de acordo com a lei vigente no país, nenhuma vítima de estupro que tenha engravidado e precisa abortar deve passar pela peregrinação de hospital em hospital que a menina paulista que fez o procedimento em Salvador, passou.
“O ideal é que esse atendimento seja feito de forma acolhedora pela rede de saúde. No site da Sesab [Secretaria da Saúde do Estado da Bahia] existe uma lista de locais que atendem na Bahia e que realizam o procedimento, mas não significa que somente esses locais fazem, toda a rede deve acolher e se não tiver estrutura para realizar, encaminhar a paciente com dignidade para o local com estrutura”, orienta Lívia.
A defensora ainda pontua que, caso a pessoa não consiga ter seu direito respeitado, ela pode entrar em contato com a Defensoria Pública do local onde vive. Se lá não tem uma defensoria implantada, pode encaminhar um e-mail para o núcleo (nudem@defensoria.ba.def.br,). “Ninguém precisa passar por esse sofrimento, inclusive deveria ser garantido o acesso no primeiro momento para evitar a gestação. Nas primeiras 72 horas após a pessoa sofrer a violência sexual ela tem o direito ao contraceptivo de emergência e ao tratamento para evitar DSTs”, informa.
Duas crianças ou adolescentes são estuprados por hora no Brasil
Entre 1º de janeiro e 13 de maio deste ano, foram feitas 7.887 denúncias de estupro de vulnerável ao serviço Disque 100, do Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania. A média nos primeiros 134 dias de 2024 foi de 60 casos por dia e duas crianças ou adolescentes estuprados por hora no país.
Na Bahia, conforme levantamento do Cedeca com base nos dados do Disque 100, no primeiro trimestre de 2024 foram 263 denúncias. Em todo o ano passado, 1946. A maioria das vítimas, acrescenta Luciana Reis, coordenadora da entidade, são meninas negras e pobres, oriundas de famílias em vulnerabilidade social.
“Cerca de 70% dos casos de abuso sexual ocorre contra meninas e 30% tem meninos atingidos. A maioria está na faixa até 13 anos, mas 10% dos casos são de adolescentes acima dos 13 anos”, complementa Luciana.
Os dados do Disque 100 e do Cedeca se somam ao que traz a edição de 2024 do Atlas da Violência, elaborado pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP). O documento, divulgado em 18 de junho, analisou informações de 2012 a 2022 e concluiu que nesse período, 65,1% das vitimas de violência sexual no Brasil foram crianças e adolescentes, com as meninas representando 86,7% das vítimas.
Na faixa etária de 0 a 9 anos, a violência sexual afetou 30,4% das crianças, ficando atrás de negligência e abandono (37,9%). No recorte de 10 a 14 anos, essa foi a forma de violência não letal prevalente, somando 49,6% dos registros feitos no Sinan – Sistema de Informação de Agravos de Notificação, do Ministério da Saúde (MS).
“No contexto da violência sexual, é preciso levar em conta a ocorrência de subnotificação por conta das características da situação. Muitas vezes o grupo mais afetado é aquele das pessoas mais vulneráveis e para que haja um registro no Sinan é preciso que a família da criança ou da pessoa vítima da violência leve a informação, seja via denúncia para os órgãos de segurança ou por conta do atendimento no hospital onde vai ser identificada a violência”, explica Juliana Brandão, pesquisadora do Fórum Brasileiro de Segurança Pública.
O Atlas mostra ainda que nas faixas de 0 a 4 anos e de 5 a 14 anos, a casa onde as crianças e adolescentes vivem aparece como local majoritário das quatro formas de violência não letal mapeadas pelo documento: psicológica, sexual, física e negligência.
“Crianças e adolescentes vítimas de abuso sexual muitas vezes não tem conhecimento do abuso. Elas confiam no indivíduo adulto que é do seu núcleo familiar ou próximo e na relação desse indivíduo com elas”, afirma Luciana Reis.