Lavagem do Bonfim: Encontro de credos e respeito entre candomblé e catolicismo
O que começou como um gesto quotidiano de lavagem das escadarias e do adro da Igreja do Bonfim, na quinta-feira anterior ao domingo em que se celebrava a festa solene no mais tradicional dos templos católicos soteropolitanos tornou-se o ponto alto das homenagens realizadas a Cristo e a Oxalá na capital baiana. O que se observa não somente na Lavagem do Bonfim, mas nos dias comuns quando se vai à famosa basílica, é o convívio harmonioso e respeitoso entre adeptos do catolicismo e das religiões de matriz africana.
Agbá Dó De Ossain, Mão Dó, Iyá do Ilê Axé Ewê, em Salvador, explica de forma muito simples e sábia esta relação de quase três séculos hoje marcada pelo respeito. “De uma religião para outra pode ter diferença de algumas coisas, mas é sempre um ajudando o outro”, diz a religiosa do candomblé. “É naquele termo assim de um ajudar o outro. Como diz o ditado, são ‘farinhas emprestadas’: eu vou para sua casa, faço ajó com meu povo. A lavagem do Bonfim é essa cerimônia das baianas com roupas do axé, que fazem aquele ajó”, diz Mãe Dó, referindo-se ao ato de lavar o adro do templo.
O padre Lázaro Muniz, coordenador da Comissão Arquidiocesana de Ecumenismo e Diálogo Inter-religioso, destaca a presença histórica dos negros e negras que ali atuavam há mais de 270 anos na limpeza da Igreja. “É uma presença histórica e significativa. Os negros e negras trouxeram consigo para o Brasil, para os lugares onde foram escravizados também sua cosmovisão, também sua religião, também seus processos de vida, a sua filosofia e assim foram se desenvolvendo e assim nasce o candomblé e tantas outras coisas”, comentou o sacerdote católico.
Muniz ressalta que a relação, a principio, entre os negros e a Igreja no Brasil de escravização. “[Mas] claro que tínhamos negros cristianizados, negros que tinham conhecido o cristianismo ainda em África e que vieram para cá, assim como havia negros muçulmanos e com outras concepções [religiosas]. Assim nasce a Igreja do Rosário dos Pretos e outras irmandades de negros já cristianizados. Na Lavagem, essa é uma presença de honra, é uma presença grandiosa”, destaca o cônego Lázaro Muniz. Ele destaca: “Os negros colocaram a sua forma de celebrar, de celebrar a fé cristã-católica e também sua ancestralidade, seus orixás”.
Mãe Dó destacou que a A Lavagem do Bonfim é uma tradição que ela acompanha desde criança. “Eu tenho 74 anos, já encontrei a festa assim e é mantida essa tradição: o ato de lavar, muita gente pede para lavar a cabeça com aquela água, para lavar a mão, a cabeça e o juízo”, descreve. Diante disso, ela diz que “a intolerância religiosa é uma loucura”. Ela exemplifica que, dentro do candomblé, ha respeito dentro das distintas tradições: “há as tradições Angola, Keto, Nagô, Jeje, mas cada um dentro de sua vida e do seu axé, se respeitando”.
Padre Lázaro Muniz, por sua vez, ressalta que o cristianismo é de raiz também africana. “Encontramos o cristianismo na Etiópia, encontramos o cristianismo na África já bem enraizado, bem presente desde as suas origens, segundo vários historiadores. A prática cristã-católica não chegou em África agora, nem chegou com a colonização”, diz o padre. Na África, há por exemplo, os ritos copta (no Egito) e etíope que, tanto nas vertentes católicas ou ortodoxas, são bimilenares como o catolicismo romano.
O sacerdote católico diz que a Igreja Católica no Brasil assume essas características da ancestralidade africana, assim como muitos terreiros têm a prática de abrigar imagens de santos católicos. “O catolicismo vivido entre nós talvez absorba assim mais a questão popular, o modo de celebrar a alegria, as quermesses, que eram também fruto da colonização portuguesa, o colorido. Coisas que estão dentro dessa forma africana de celebrar, de cantar, de louvar, de bendizer, de dançar”, observou Lázaro Muniz. “Isso é uma marca muito expressiva e com certeza isso influencia o catolicismo que vinha mais romanizado”, comentou o sacerdote católico.