Morre Aldir Blanc, um dos maiores compositores brasileiros, por coronavírus
Aldir Blanc não saía de casa. Agora que ninguém deve mesmo sair, por causa do novo coronavírus, ele foi obrigado a sair, por culpa do vírus. Não voltou mais.
A Covid-19 levou na madrugada desta segunda-feira (4), no Rio de Janeiro, um dos mais importantes letristas da música brasileira. Aldir tinha 73 anos e estava internado desde 15 de abril na UTI (Unidade de Terapia Intensiva) do Hospital Universitário Pedro Ernesto, onde um exame confirmou a infecção pelo coronavírus. Antes, dera entrada no dia 10 no Hospital Municipal Miguel Couto com infecção urinária e pneumonia. Foram 24 dias de luta. Sua resistência impressionou médicos do Pedro Ernesto. “Ele não quer ir embora” foi uma das frases que disseram durante o tratamento.
Em mais de cinco décadas de atividade, Aldir construiu uma obra marcada pela capacidade de fundir os contrários: humor e fossa, devaneio e realidade, lirismo e grossura, a aldeia e o mundo. Para ele, a vida não comporta reciclagem de lixo. Tudo se mistura. Dava o mesmo valor à palavra mais bonita e ao palavrão mais chulo. Assim criou mais de 600 letras.
Dor e alegria já estavam embaralhadas na infância de Aldir Blanc Mendes. Ele nasceu em 2 de setembro de 1946, no bairro do Estácio, berço do samba urbano carioca. Sua mãe nunca se recuperou totalmente de uma depressão pós-parto. Seu pai, que se tornaria um grande amigo, era pouco afetuoso. O filho único foi ser feliz com os avós em Vila Isabel, bairro de um seus ídolos, Noel Rosa —e, triste coincidência, do hospital onde morreu.
Recordou os tempos de criança no emotivo livro “Vila Isabel – Inventário da infância”, de 1996. Na região conheceu (e reinventou) os personagens de suas crônicas, reunidas em volumes como “Rua dos Artistas e Arredores” (1978) e “Porta de Tinturaria” (1981).
Mas foi a música que tornou seu nome conhecido nacionalmente. Em meados dos anos 1960, enquanto praticava letras e poemas, atuava como baterista em conjuntos semiprofissionais. Chegou a ser contratado para tocar em um programa infantil da TV Globo.
As primeiras letras a chamar a atenção apareceram em festivais do final da década. O sucesso veio com “Amigo É pra Essas Coisas”, parceria com Silvio da Silva Jr. que ficou em segundo lugar no Festival Universitário de 1970. Foi o período em que ele integrou o MAU (Movimento Artístico Universitário), ao lado de Ivan Lins, Gonzaguinha e outros.
No ano seguinte, um rapaz chamado Pedro Lourenço se impressionou em Ouro Preto, em Minas Gerais, com um estudante de engenharia tocando violão. Disse a ele, João Bosco, mineiro de Ponte Nova, que tinha um amigo no Rio de Janeiro capaz de pôr palavras naquelas melodias. Nascia um dos encontros mais importantes da música brasileira.
A leva inicial de composições se deu por carta. Um exemplo: “Agnus Sei”, lançada em 1972 num disco compacto do jornal “O Pasquim” —no lado A, estava a então inédita “Águas de Março”, interpretada por seu autor, Tom Jobim.
Naquele ano, com Bosco de passagem pelo Rio, mostraram algumas músicas para Elis Regina. Ela escolheu “Bala com Bala” para o disco que estava realizando e reservou outras para o trabalho seguinte. Passou a receber em primeira mão as novidades da dupla. Gravou 20 delas, além de duas de Blanc com outros parceiros —o irmão de fé Maurício Tapajós e a amiga Sueli Costa.
A assinatura Bosco e Blanc consta de canções marcantes como “O Mestre-sala dos Mares”, “Dois pra Lá, Dois pra Cá”, “De Frente pro Crime”, “Kid Cavaquinho”, “Incompatibilidade de Gênios”, “O Ronco da Cuíca”, “Transversal do Tempo”, “Corsário”, “Bijuterias”, “Nação” (esta também com outro grande amigo, Paulo Emílio) e, é claro, “O Bêbado e a Equilibrista”.
No Natal de 1977, inspirado na morte de Charlie Chaplin naquele dia, Bosco fez uma melodia citando “Smile”, composição do cineasta. Blanc achou que valeria associar a figura de Carlitos a outros deslocados na história, como os exilados pela ditadura militar. O movimento pela anistia ganhou um hino. Elis gravou em 1978, Bosco em 1979. O verso inicial, “Caía a tarde feito um viaduto”, evocava o desabamento do Elevado Paulo de Frontin, no Rio, em 20 de novembro de 1971.
Os dois amigos inseparáveis começaram a se separar em 1982. Foi gradual e, de acordo com eles, sem brigas. As melodias de um e as letras do outro passaram a não se encaixar. Talvez por influência de terceiros, mágoas surgiram. O reencontro (imprevisto) aconteceu apenas em 2002, numa gravação de “O Bêbado e a Equilibrista” por Blanc para o songbook de Bosco. Desde então voltaram a se falar por telefone diariamente, além de compor às vezes, sem a urgência dos anos de juventude.
O letrista engatou outras parcerias. Duas foram as mais produtivas: com Guinga, violonista e compositor originalíssimo, explorador de vários gêneros, melodista de “Catavento e Girassol”; e com Moacyr Luz, artista mais identificado com o samba, mas com quem Blanc criou a romântica “Coração do Agreste”, tema da novela da TV Globo “Tieta”, na voz de Fafá de Belém, e um dos maiores sucessos de sua carreira.
Com Cristovão Bastos, entre outras, fez “Resposta ao Tempo”, gravação de Nana Caymmi e abertura da minissérie “Hilda Furacão”. Ainda compôs com Edu Lobo, Carlos Lyra, Djavan, Ivan Lins, Raphael Rabello, Ed Motta, Jayme Vignoli e outros.
Intérpretes realizaram CDs apenas com letras suas. Foram os casos recentes da portuguesa Maria João e da carioca Mariana Baltar. Ele passou a receber encomendas de artistas mais jovens. Ficava entusiasmado, mas sabia que dificilmente se converteriam em frutos financeiros. No panorama atual, direitos autorais rendem muito pouco, e Blanc dependia deles.
Embora tivesse boa voz –como provou no CD “Vida Noturna” (2005) e, antes, no álbum que dividiu com Maurício Tapajós, em 1984, e em faixas do comemorativo “50 Anos” (1996) –, não fazia shows.
Desenvolveu uma fobia social que se converteu em reclusão quase permanente. Contribuiu para isso um grave acidente de carro acontecido em 1991 e que lhe dificultou para sempre o movimento da perna esquerda. Também tinha diabetes. Havia mais de dez anos que, salvo dias de exceção, não fumava nem bebia. Passava a maior parte do tempo em seu escritório cultivando a obsessão por livros. Lia sem parar, de tudo: mitologia grega, Segunda Guerra Mundial, psicanálise, muitos romances policiais etc. Nunca saiu do Brasil, mas viajava com os livros.
Adorava falar pelo telefone com os amigos. Comentava o noticiário –com humor e indignação– e compartilhava informações sobre a família. No primeiro casamento teve duas filhas, Mariana e Isabel. Tristeza maior de sua vida, perdeu gêmeas que se foram no dia do parto prematuro, em 1974. Dizia que ali perdeu o ânimo para exercer a medicina profissionalmente. Ele se formara em 1971, com especialização em psiquiatria.
Quando se casou com a professora Mari Lucia, ela já tinha duas filhas, Tatiana e Patrícia. Viraram suas também. Das quatro vieram cinco netos e um bisneto.
Nos dias anteriores à internação, falava sempre da Covid-19, com medo de que alguém amado fosse atingido. Não demonstrava preocupação consigo mesmo. Foi pego de surpresa. Numa quinta-feira estava bem, na sexta foi levado de ambulância para o hospital.
Deixa, além da família, uma legião de amigos e admiradores.