Proibido no Brasil, comércio de barriga de aluguel movimenta internet

 Proibido no Brasil, comércio de barriga de aluguel movimenta internet

“Cedo meu útero por R$ 30 mil em dinheiro e um carro a partir do ano de 2012.”

“Alugo barriga por R$ 50 mil para terminar de construir minha casa.”

“Se você não tiver dinheiro, mas puder me arrumar um emprego, alugo meu útero sem custos.”

Ao rolar a página de um grupo público sobre barriga de aluguel na internet, a sensação é de estar vendo uma seção de classificados. As mulheres informam quanto cobram e quais são suas exigências, e os possíveis contratantes selecionam as que mais se encaixam no perfil que procuram e entram em contato. Os valores costumam variar de R$ 10 mil a R$ 50 mil, e muitas “candidatas” se dispõem a viajar para outros estados.

Tão explícitas na rede, essas transações comerciais são, no entanto, proibidas no Brasil. Por aqui, só se pode “emprestar” a barriga para parentes de até quarto grau e se não houver dinheiro envolvido, no que é chamado tecnicamente de cessão temporária de útero ou gravidez por substituição.

Quem tenta driblar isso tem, em geral, consciência da proibição, mas alega necessidade financeira. Foi, por exemplo, quando o trabalho como doceira passou a render menos e empurrou Luana* para uma crise em seu orçamento doméstico, que a jovem de 23 anos, moradora de São Gonçalo, começou a pensar na possibilidade de ganhar dinheiro com seu útero. Mãe de uma menina de 7 anos, fruto de uma gestação tranquila, ela enxergou uma alternativa para driblar as dificuldades que enfrentava. Começou pedindo R$ 20 mil no maior grupo do tipo no Facebook, que reúne 2,3 mil membros. Com o tempo, foi diminuindo o preço, até que, este mês, fechou com um casal homossexual de São Paulo.

— Eu me comovi com a história deles, até porque eu também sou homossexual — conta ela, acrescentando que a mulher, com quem está há três anos, não vê problemas em relação à barriga de aluguel e só não tentou, ela mesma, porque teve uma gravidez de risco no passado.

O casal paulista virá até o Rio encontrá-la pessoalmente no mês que vem. A partir daí, eles decidirão como fazer o procedimento, mas a primeira sugestão dos contratantes foi uma “inseminação caseira”: coletar o esperma de um deles e entregar à jovem para que, com uma seringa, ela despeje o sêmen em sua vagina.

Esta seria uma forma de não precisarem ir até uma clínica de fertilização, já que as instituições costumam respeitar a norma do Conselho Federal de Medicina (CFM), segundo a qual pode existir somente a barriga solidária, e não de aluguel.

Procedimento parecido foi feito por Marina* há cinco anos. Ela recebeu R$ 50 mil e teve as despesas médicas custeadas durante a gravidez. Não voltou a alugar a barriga desde então, mas comentou ativamente no último ano num grupo on-line sobre o assunto. Ela, no entanto, não quis dar detalhes sobre como realizou o processo:

— Tenho medo de falar e acabar sendo presa.

A advogada Elane Souza, especializada em Direito de Família e Penal, afirma, no entanto, que quem faz ou contrata barriga de aluguel não pode ser punido, uma vez que não há legislação sobre o tema.

— Não cabe prisão porque essa prática não está tipificada na lei — ressalta ela.

PUNIÇÃO PARA MÉDICOS

O que existe é uma resolução do CFM, que atua somente em relação aos médicos. Estes, sim, podem ser até mesmo impedidos de exercer a profissão, caso fique comprovado que descumpriram a norma. A resolução 2.168/2017 diz expressamente que a “cessão temporária do útero não poderá ter caráter lucrativo ou comercial”. A norma também inclui a necessidade de haver parentesco até quarto grau, o que significa dizer que só podem ceder a barriga as mães ou filhas (primeiro grau), irmãs ou avós (segundo grau), tias ou sobrinhas (terceiro grau) e primas (quarto grau).

As regras em torno do tema vêm sendo flexibilizadas nos últimos anos. Até 2013, o CFM só permitia gravidez por substituição entre parentes até segundo grau. Em uma nova resolução em 2015, o órgão ampliou os parentescos possíveis, mas considerando apenas o grau ascendente — permitindo tias, mas não sobrinhas, por exemplo. Já no ano passado, o Conselho lançou nova resolução deixando claro em seu texto que, quando se refere a quarto grau, inclui tanto o parentesco ascendente quanto o descendente. Tudo isso num esforço de atender um número maior de pessoas.

— Ampliamos as possibilidades também a fim de inibir possíveis transações pecuniárias — afirma o diretor do CFM, José Hiran da Silva Gallo, que é coordenador da câmara técnica de reprodução assistida do Conselho. — Pessoas solteiras também passaram, em 2017, a ter direito a recorrer à cessão temporária de útero. Tais alterações visam ampliar a possibilidade de procriação de indivíduos que assim desejarem.

Para aqueles que não têm parentes disponíveis, é preciso pedir autorização ao Conselho Regional de Medicina para fazer o procedimento com alguma amiga, apresentando justificativas. A tarefa, no entanto, nem sempre é simples.

— É demorado. Tenho pacientes que levaram um ano até receberem a resposta — conta a diretora-médica do centro de fertilidade Vida, Maria Cecília Erthal.

Esses pedidos de autorização são raros. O Cremerj informou ao GLOBO que recebeu três solicitações em 2017, todas aprovadas. Já ao Cremesp, chegaram 57 solicitações no mesmo período, e 42 foram autorizadas. Também é possível recorrer da decisão no próprio CFM. No último ano, nenhum pedido de recurso foi feito.

PROIBIÇÃO NÃO É CONSENSO ENTRE ESPECIALISTAS

O tema não é consenso mesmo entre especialistas em reprodução. Para Maria Cecília, ter uma barriga solidária dentro da família e sem pagar é o ideal, por uma questão emocional e de segurança para os pais e o bebê, mas a proibição da transação comercial traz outros problemas.

— O vínculo comercial dá, sim, margem a práticas de má-fé. No entanto, há uma faca de dois gumes: quando você proíbe, acham um jeito de fazer de forma clandestina, e, portanto, insegura. Proibir não é o melhor caminho, mas isso é uma opinião pessoal — diz ela.

Membro da Sociedade Brasileira de Reprodução Assistida (SBRA), Marcio Coslovsky ressalta que o objetivo da norma é, acima de tudo, impedir que se atente contra a dignidade humana:

— A ideia é proteger as pessoas e não explorar a miséria delas. A única ponderação que cabe notar é que tal proibição, de forma geral, é associada à classe social: quem tem dinheiro pode pegar um avião e fechar um contrato de barriga de aluguel, porque vários países permitem.

Já Cláudia Navarro, diretora da Life Search e membro do corpo clínico do Laboratório de Reprodução Humana do Hospital das Clínicas da UFMG, compara a barriga de aluguel à venda de órgãos.

— Embora ceder temporariamente o útero não seja exatamente a mesma coisa que vender órgãos, quando alguém faz isso vende uma parte do corpo, mesmo que por um período. Se a venda de órgãos e tecidos é proibida pela Constituição do Brasil, a barriga de aluguel também deve ser — argumenta ela.

A especialista diz, ainda, que uma “inseminação caseira”, feita fora das clínicas especializadas, envolve uma série de perigos.

— Há risco grave de infecção. Nas clínicas, o sêmen fica guardado seis meses antes de ser usado, para dar tempo de a janela de incubação dos vírus terminar. Isso nos dá garantia de que a pessoa não tem HIV, por exemplo — diz ela. — E se, além da barriga, a mulher usar seu óvulo, ela será mãe de fato da criança. Pode, no futuro, pedir guarda, pensão. São muitas as consequências.

* Os nomes foram trocados para proteger a identidade das mulheres.

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