481 dias sem solução: audiência sobre tragédia em Mar Grande é adiada

 481 dias sem solução: audiência sobre tragédia em Mar Grande é adiada
A espera por justiça é grande para as famílias das vítimas e sobreviventes da lancha Cavalo Marinho I

Em meio aos destroços da Cavalo Marinho I, lancha que adernou na Baía de Todos-os-Santos, matando 19 pessoas e deixando outras 74 feridas, em agosto do ano passado, o marinheiro Moacir de Jesus utilizou seus ensinamentos da escola naval para salvar a sua vida e a de mais três tripulantes que embarcaram junto com ele na manhã do acidente, que completa nesta terça-feira (18) 481 dias.

O marinheiro pede na Justiça um valor por danos materiais que não ultrapassa R$ 425 e que, comparado às outras ações movidas na Justiça, parece insignificante. A quantia foi calculada com base no dinheiro que a vítima carregava consigo para pagar algumas contas. Além disso, ele pede o ressarcimento pelo celular perdido em alto-mar. 

“Não peço nada grande, apenas o meu celular e duas dívidas que eu tinha que pagar. Eu sou marinheiro e vivo no mar há muitos anos, já passei por várias situações. A única coisa que me tira o sossego é não ter salvo mais vidas. Era a minha obrigação”, disse Moacir.

Adiamento
Nessa segunda-feira (17), sete sobreviventes compareceram ao Fórum Desembargador Antônio Bensabat, em Mar Grande, Ilha de Itaparica, para a primeira audiência de instrução, que acabou não acontecendo.

A sessão teve que ser remarcada para 14 de fevereiro, porque uma das vítimas não foi à comarca. Parte dos sobreviventes foi intimada no dia 28 de outubro a ir ao fórum para uma sessão que tinha a finalidade de colher depoimentos tanto dos sobreviventes do naufrágio quanto dos acusados.

Configuram como réus do processo o comandante da embarcação, Osvaldo Coelho Barreto, e o dono da empresa CL Transporte Marítimo, responsável pela travessia Mar Grande-Salvador, Lívio Garcia Galvão Júnior.

O comandante chegou ao fórum acompanhado de seu advogado de defesa, enquanto o dono da empresa não foi ao local, sendo representado apenas pelo seu defensor.

No encontro, às 10h, os citados deveriam ter sido ouvidos pelo juiz Eduardo Augusto Ferreira Abreu, responsável pela comarca. No entanto, ambas as partes foram informadas sobre a nova data do processo ainda na sala de audiência.

A instrução é a primeira fase do processo penal em que o comandante e o dono da empresa são acusados pelo Ministério Público da Bahia (MP-BA), com base em inquéritos policiais por agirem com “imprudência e imperícia”.

Deveriam ter sido ouvidas as testemunhas de acusação. Logo após os relatos dos sobreviventes, as testemunhas de defesa se apresentariam com suas versões sobre o caso.

Acordo
“Hoje (ontem), quando começaria a instrução, verificou-se que uma testemunha de acusação não estava presente. Daí, não poderiam ser ouvidas as testemunhas de defesa. Em comum acordo, a defesa, o Ministério Público e o juiz decidiram fazer uma nova audiência, quando serão colhidas as oitivas das testemunhas do Ministério Público e de defesa. Após os depoimentos, será marcada uma nova audiência para o interrogatório dos réus”, explicou o advogado de defesa do comandante, Leite Matos.

O advogado de defesa da empresa, Vivaldo Amaral, não quis dar entrevistas, confirmando apenas a ausência do cliente e a nova data dessa fase do processo. Caso a Justiça entenda que os réus são culpados pela tragédia, eles podem responder por homicídio culposo (quando não há intenção de matar) e lesão corporal culposa.

Espera
Há sobreviventes que cobram da CL Transporte Marítimo valores maiores do que o pedido pelo marinheiro Moacir, como é o caso do aposentado Justino Apóstolo de Jesus: mais de R$ 2 milhões.

Outras vítimas pedem R$ 200 mil, como a dona de casa Nicéia dos Anjos Teixeira, que estava no fórum, nessa segunda-feira (17), ao lado do seu marido, o funcionário público aposentado Lourival Jesus Batista, que é deficiente visual.

A dona de casa Nicéia dos Anjos Teixeira, uma das vítimas do acidente, aguarda indenização (Foto: Mauro Akin Nassor/CORREIO)

No caso de Nicéia, é levado em consideração o valor de uma cirurgia que ela fez em um dos braços antes do naufrágio, algo em torno de R$ 65 mil – realizada pelo seu plano de saúde. Após a tragédia, na ânsia de se salvar e ajudar o marido a sair de dentro da embarcação, o membro, que já havia passado pelo procedimento, acabou ficando comprometido, segundo ela.

Além disso, a dona de casa também pede reparação por danos psicológicos. As cobranças foram solicitadas pelos sobreviventes no ano passado por meio de ações ajuizadas pela Defensoria Pública do Estado (DPE).

“O processo anda a passos de tartaruga. Até agora, nada de concreto”, lamenta Lourival (veja abaixo o andamento dos processos).

O técnico em TI Edvaldo Conceição também solicita um montante por danos materiais. O valor, que ele prefere não revelar, foi levantado a partir dos prejuízos com o material de trabalho que ele carregava durante a travessia até Salvador. “O valor foi acordado entre a gente (Defensoria). Perdi todo o equipamento eletrônico para manutenção, ferramentas, material de trabalho mesmo”, reclamou Edvaldo.

O técnico em TI Edvaldo Conceição também solicita um valor por danos materiais (Foto: Mauro Akin Nassor/ CORREIO)

Causas
O naufrágio ocorreu em 24 de agosto de 2017, dez minutos depois de a Cavalo Marinho I, toda de madeira, ter deixado o Terminal de Mar Grande, na Ilha de Itaparica, às 6h30.

Segundo o promotor Ubirajara Fadigas,  a embarcação passou, após as vistorias técnicas, por alteração no lastro que não foi comunicada formalmente à Capitania dos Portos e ao engenheiro naval que havia aprovado a lancha. Como nenhum órgão competente avaliou a alteração, não houve certificação ou segurança de que a mudança não trouxe instabilidade para a embarcação, que tinha 44 anos navegando até o dia do tragédia.

Ações correm também na área cível

Em agosto deste ano, quando o acidente em Mar Grande completou um ano, ao menos 95 processos corriam nas Justiças estadual e federal em Salvador, de acordo com um levantamento do CORREIO.

A audiência de instrução seria realizada nessa segunda-feira (17) no âmbito criminal, após uma denúncia enviada pelo Ministério Público da Bahia (MP-BA) à Justiça com o recebimento do inquérito da Polícia Civil.

Além do processo criminal, o MP-BA entrou com um processo cível, que aguarda despacho do juiz. De acordo com o Tribunal de Justiça da Bahia (TJ-BA), a audiência de ontem foi remarcada por conta da ausência do MP-BA.

Já a Defensoria Pública da União (DPU), que abriu 20 processos no Tribunal Regional Federal da 1ª Região, ainda não ajuizou uma ação civil pública coletiva por danos morais. Até agora, a DPU abriu um inquérito civil e aguarda respostas do Tribunal Marítimo. Os processos da DPU são contra a Marinha do Brasil.

No Tribunal Marítimo, a Corte, que tem a jurisdição para julgar as responsabilidades pelo acidente, em sessão de 29 de novembro, decidiu, por unanimidade, não receber uma representação privada. O processo se encontra na fase de instrução.

Caso os representados – o comandante Osvaldo Coelho Barreto, o engenheiro Henrique José Caribé Ribeiro e o proprietário da empresa CL Transporte Marítimo, Lívio Garcia Galvão Junior – sejam condenados pelo Tribunal Marítimo, eles poderão receber penalidades administrativas, como repreensão, medida educativa, suspensão de pessoal marítimo, interdição para o exercício de função, cancelamento da matrícula profissional, proibição ou suspensão do tráfego da embarcação, cancelamento do registro de armador, além de multa.

A Defensoria Pública do Estado (DPE-BA), que abriu 43 processos na Justiça estadual, e o Ministério Público Federal (MPF-BA), que estava para abrir um inquérito civil para apurar a realização de inspeções e vistorias navais pela Capitania dos Portos da Bahia (Marinha do Brasil), também foram procurados pela reportagem por e-mail e telefone, mas não responderam até o fechamento desta reportagem.

*Sob a supervisão do chefe de reportagem Jorge Gauthier. Colaborou Thais Borges.

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